Contados por Eugênia Morais


Efêmero encontro

Se olharam profundamente por alguns breves momentos. Foi o bastante para fazer brotar um doce sorriso na fina boca daquela arrefecida  mulher e imutar a alma errante do solitário homem de coração amargo.
Depois daquela troca de olhar no entanto, tudo pareceu mudar.
Viveram momentos instantâneos de inigualável alegria como numa peça de teatro ambulante onde os atores só regressam nas eternas noites de insônia da imaginação.
Acolheram-se em abraços existentes apenas nas suas mentes.
Beijaram-se como a lua beija o sol.
Falaram-se com gestos de olhares e mímicas em pensamentos.
Viveram segredos como se antes de cada um não houvesse acontecido nada.
Amaram-se com irrestrita sutileza.
Sabiam no entanto, que depois dali fatalmente se separariam e se perderiam nas frias madrugadas dos alheios invernos.
E cada um seguiria seu caminho sem adeus nem lágrimas.
Levariam consigo aquele segredo só deles, e carregariam n'alma uma lacônica esperança de algum dia voltarem a se encontrar — nessa ou em outra vida.

A bibliomante

Naquela manhã, exatamente naquela manhã, o que ela queria mais saber era do seu próprio futuro. Afinal já tinha adivinhado o futuro de tanta gente, por que não o seu próprio??
Pegou um livro de capa dura dourada na estante à sua frente. Era o mais bonito e volumoso que possuía na sua imensa coleção.
Com gestos calmos abriu o livro no meio em uma página escolhida ao acaso. Começou então a interpretação e à medida que lia desesperava-se.
— Não, não! Ela não ia esperar aquele futuro cruel que a esperava! — falou em voz alta.
Sorte desgraçada. Maldito infortúnio.
Com gestos mais calmos ainda — e decisivos —  queimou algumas folhas do livro.
Depois, serenamente e com passos decisivos  foi até o quarto ,pegou um veneno para ratos e sorveu-o de um só gole.
Pronto, agora sim, a sua sorte estava mudada.
Iria sim conseguir mudar o que a esperava, de uma maneira dolorosa, mas nem tanto quanto a que viu naquela página.
No dia seguinte, estampada nos jornais da cidade lá estava a sua morte revelada tragicamente. O seu futuro antecipando-se e sendo totalmente diferente daquele descoberto pelos seus dons de adivinhadeira.
Um futuro que ela nem chegou a ver, esperar, sequer adivinhar.

Um final,enfim, feliz!

No dia  em que se conheceram, o universo todo conspirava a favor: pássaros cantavam alegremente, o sol brilhava em seu maior esplendor, e a lua surgiu  cor de prata  aspergindo purpurina por entre as nuvens. Em todos os jardins do mundo,só haviam flores e perfume no ar.Tudo na maior harmonia  e cumplicidade entre eles e a natureza. Foi amor à primeira vista. Belos,jovens e saudáveis, beirando a perfeição até, pareciam dois personagens saídos de um livro de Contos de Fadas. Um amor sim, com ares  aristocráticos. E foi assim que elegeram-se príncipe e princesa.Ao mesmo tempo,sem perceberem, despertaram inveja,raiva e outros sentimentos mesquinhos,por onde caminhavam. Mesmo assim seguiram felizes,despreocupados,amando-se e vivendo momentos mágicos ,até que um dia  começaram a acontecer  uns pesadelos terríveis,  que aos poucos sobrepujaram sonhos, destruindo aquele amor, e  levando a princesa chorosa para bem longe do príncipe,deixando-a inatingível.Aconteceu a separação irrevogavelmente... Dias intermináveis de dor e saudade. Anos talvez? Ninguém sabe quanto tempo se passou. Só se sabe que o  universo,negramente  silenciou  em respeito a dor do provável fim de  tão belo amor. A princesa derrocada, totalmente entristecida,já sentia seu coração quase desfalecendo de saudade e dor.Parecia o fim, quando eis que, desesperado de amor, o príncipe morto, ressurgiu das cinzas,tal qual o pássaro fénix ,surpreendendo a tudo e a todos, desafiando  os obstáculos com sua espada de aço, disposto a cortar todas as amarras , e a  matar todos os monstros devoradores do seu amor pela sua princesa.Nas mãos ,trazia  um buquê de rosas vermelhas,sua arma mais sutil.No coração,  palavras doces de arrependimento. E foi assim,que o príncipe voou de volta ao coração da princesa,tirando-a da escuridão e exaurindo suas dores e  lágrimas. Pulsou-lhe vida, imutavelmente. E ela, como em nenhuma outra hora, sentiu-se tão bela, tão princesa e tão plena!A primavera espalhou-se serenamente pelo jardim que os cercava. E o universo voltou a conspirar com aquela felicidade reintegrada.À noite, a lua , abeirando-se por trás da montanha, veio espiar sorrateiramente a vitória daquele amor, chegando minutos   antes daquele encontro que eternizaria  a vida deles, transformando aquela história,enfim,num final feliz  e sempiterno.
A vitória final de uma história  de  amor que quase acabou, é mais linda , abençoada e brilhante do que qualquer começo ou meio de qualquer história de amor...
Eugênia Morais

Qualquer semelhança NÃO é de forma alguma mera coincidência.Tudo isso aconteceu,me inspirando a condensar essa longa e linda história de amor, em um miniconto.
Beijos e parabéns a vocês,meus queridos e amados  príncipes lindos!

Pássaro perdido

Era um fim de tarde naquele cartório lotado de gente, esperando o chamado do número da senha.
O burburinho comum de lugares assim, de repente,silenciou, com aquela cena  que estava acontecendo.
Voando graciosamente cartório adentro,para lá e para cá ,um sanhaço-cinzento com seu agito natural,resolveu fazer um pouso para descanso.Logo atrás,veio um homem para agarrá-lo, e levá-lo para que voasse rumo ao céu, o seu lugar. De modo sorrateiro,o homem aproximou-se do local do pouso, e falou timidamente para a dona do lugar onde o pássaro resolvera pousar:  - Dá licença? Vou pegar algo aqui no bolso traseiro da sua calça..Pegou-o, e mais do que rapidamente correu ligeiro,com o sanhaço nas mãos , deixando  atônita e pasma a mulher, sem nada entender. No caminho, ainda conversou com a ave macho,que já entoava feliz um assobio flauteado, e lhe disse  que as nádegas da mulher não era frutinho da embaúba ,não.Naquele dia, ficaram registrados para sempre, os  gritos enloquecidos, xingamentos de safado,descarado,desavergonhado e  o desespero da mulata de traseiro avantajado,onde o inocente passarinho resolvera pousar.Por pouco,pouquíssimo, quase dá cana para o "salvador dos pássaros perdidos",naquela tarde insólita,no cartório.

Solidão virtual


Reservara aquele pedaço de rua, para navegar.Começava a teclar sob os primeiros raios de sol, e só terminava quando a lua vinha dar-lhe boa-noite,expulsando-a da calçada.Tinha como assídua companhia, a solidão, e como estava sempre virada para o céu, mantinha-se longe demais dos olhos reais. Porém, cada vez mais perto da internet.Toda vez que teclava, os dedos doiam.Cada vez que lia uma mensagem, a cabeça explodia de dor, e os olhos ardiam como fogo.As frases enviadas, e as palavras recebidas pareciam encetar uma guerra perversa,sem possibilidades de paz real.Queria sair de tudo aquilo e ir viver,mas não conseguia desligar-se da conexão.Sentindo que a sua vida estava presa por um fio,sorveu um copo de  suco de beterraba com avidez, na esperança de depurar o que ainda a fazia sentir-se viva, e real: seu sangue.


Premonitória nupcial

 O pai, a mãe, os cinco irmãos e até a vizinha,lhe avisaram,mas mesmo assim ela acreditou que aquele homem tiraria dela ,a sensação de solidão que a sufocava há anos. Precisava se casar!Reservou o terraço para celebrar a cerimônia,acreditando piamente que o sol secaria alguma lágrima, se preciso fosse derramada.E, enquanto o padre esperava que o noivo pronunciasse o sim tão desejado,eis que ela num ímpeto gritou um sonoro "não" ,que ecoou por toda a cidade.Pedaços do véu rasgado acompanharam o som do seu grito,caindo com estrondo no chão da calçada.













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Camisa de força


Ninguém compreendia a loucura dele por tanto amor,por ela. Nem ela. A infeliz zombava dos seus sentimentos, mas mesmo assim ,amou-a tanto, até que  a última gota de sanidade mental esvaísse da sua cabeça. Não tinha outra alternativa, escravizaria o seu coração e humilharia aquele sentimento.Naquela tarde fria de domingo,tirou as roupas que cobriam seu corpo trêmulo,correu para a rua, e começou a gritar ensandecido no meio da praça, para que alguém trouxesse uma camisa de força.
Só assim teria as  mãos,braços,peito e coração atados para sempre.
Não! Não abriria mais seus braços,tampouco seu coração, para ela. E, enfim, iria se sentir  livre de tudo aquilo, e seria apenas lembrado como mais um extravagante,  que tanto amou platonicamente.